Monday, December 13, 2010

Espaço positivo


Sentada sobre as minhas pernas pondero a minha existência. A pressão da All Star nas minhas nádegas leva-me a contemplar o meu cadastro comportamental.
Das palmas dos meus pés chegam-me ecos já muito ténues de queixumes que denunciam o uso excessivo das botas de salto alto, no dia anterior. Informam o meu cérebro de que este constante alternar de alicerces é algo desagradável e que gostariam que a situação fosse, se possível, rectificada. Contentar-se-iam até com pequenas concessões da minha parte, quiçá evitar o transporte de objectos pesados enquanto sujeitas a esse tipo de calçado.
O meu gémeo direito informa-me, com uma sucessão de picadelas em crescendo, em jeito de código Morse, que estou prestes a perder uma parte substancial da sua funcionalidade. Não aprecio o tom condescendente, de quem já não vê utilidade em notificar-me pois vou simplesmente deixar-me estar e dar-me por surpresa quando, ao erguer-me, me vir subitamente perneta. A soberba do membro inferior!
O meu pé esquerdo, já desprovido há muito da sua prisão de pano e borracha, acaricia o chão num movimento pendular, agradecido pelo contacto gentil com a superfície fresca e polida. A maioria das partes do meu corpo, se sujeita a sufrágio universal, escolheria terapêutica de frio. O meu pescoço talvez discordasse. Nariz contra, com certeza. Sei que as coxas votariam em branco, para preservarem a sua modéstia. Evitam expor-se.
Que estava eu a dizer?
Contemplava a minha existência.
Um suspiro profundo e raspar de unhas no couro cabeludo, que invariavelmente se transforma num enlaçar de falanges pelo cabelo, traduzem a resposta do meu corpo a este recorrente exercício mental. “Inútil”.
Cala-te. Que sabes tu?
Os meus ombros e pescoço sabem que a minha postura é deplorável. Endireito-me. Sinto os seios a bater na mesa. De Inverno pesam-me. Arrumo-os sobre a mesa e esqueço as exigências vertebrais.
Apoio o cotovelo direito na mesa e a têmpora no carpo. Olho para o ecrã na diagonal.
Apoio o cotovelo esquerdo na mesa e o queixo no carpo. Olho para o ecrã de cima.
Mordo os lábios. Molho os lábios. Faço uma careta. Encarquilho a cara e agito o nariz. Bocejo de boca aberta e a língua sobe-me ao céu-da-boca. Visualizo a imagem vaga e modelo que o meu cérebro atribui a um gato. Sempre sou felina em qualquer coisa. Ou tornei-me? Sempre bocejei assim? Não me parece. Agora sempre bocejo assim.
Bocejo novamente, desta vez fecho também os olhos. Coço-os. Também eles se queixam. A única atenção que lhes dedico é agressiva e invasiva. Não apreciam as visitas perfuradoras dos meus dedos indelicados e das minhas unhas amoladas. Muito indignados, retrucam que apenas se manifestam por desleixo na minha higiene ocular. Eu sou a culpada das minhas maleitas. Já sei do que falam. Escarafuncho um pouco mais para os calar.
Mapeio o rosto. Sinto as suas protuberâncias e irritações. Oleosidade. A minha auto-estima projecta um mapa topográfico severo. Suspiro de desalento.
Contemplo a persistência da existência. A tenacidade do meu conjunto.
Levanto-me.

Lili

2 comments:

Pintas nos Olhos said...

Bom texto. É difícil descrevermo-nos tão bem, à gestos que são tão automáticos que nem damos por eles.

Morcegos no Sótão said...

See? Darias uma excelente autora, se isto é uma amostra. :)

MJNuts