Monday, December 13, 2010

Espaço positivo


Sentada sobre as minhas pernas pondero a minha existência. A pressão da All Star nas minhas nádegas leva-me a contemplar o meu cadastro comportamental.
Das palmas dos meus pés chegam-me ecos já muito ténues de queixumes que denunciam o uso excessivo das botas de salto alto, no dia anterior. Informam o meu cérebro de que este constante alternar de alicerces é algo desagradável e que gostariam que a situação fosse, se possível, rectificada. Contentar-se-iam até com pequenas concessões da minha parte, quiçá evitar o transporte de objectos pesados enquanto sujeitas a esse tipo de calçado.
O meu gémeo direito informa-me, com uma sucessão de picadelas em crescendo, em jeito de código Morse, que estou prestes a perder uma parte substancial da sua funcionalidade. Não aprecio o tom condescendente, de quem já não vê utilidade em notificar-me pois vou simplesmente deixar-me estar e dar-me por surpresa quando, ao erguer-me, me vir subitamente perneta. A soberba do membro inferior!
O meu pé esquerdo, já desprovido há muito da sua prisão de pano e borracha, acaricia o chão num movimento pendular, agradecido pelo contacto gentil com a superfície fresca e polida. A maioria das partes do meu corpo, se sujeita a sufrágio universal, escolheria terapêutica de frio. O meu pescoço talvez discordasse. Nariz contra, com certeza. Sei que as coxas votariam em branco, para preservarem a sua modéstia. Evitam expor-se.
Que estava eu a dizer?
Contemplava a minha existência.
Um suspiro profundo e raspar de unhas no couro cabeludo, que invariavelmente se transforma num enlaçar de falanges pelo cabelo, traduzem a resposta do meu corpo a este recorrente exercício mental. “Inútil”.
Cala-te. Que sabes tu?
Os meus ombros e pescoço sabem que a minha postura é deplorável. Endireito-me. Sinto os seios a bater na mesa. De Inverno pesam-me. Arrumo-os sobre a mesa e esqueço as exigências vertebrais.
Apoio o cotovelo direito na mesa e a têmpora no carpo. Olho para o ecrã na diagonal.
Apoio o cotovelo esquerdo na mesa e o queixo no carpo. Olho para o ecrã de cima.
Mordo os lábios. Molho os lábios. Faço uma careta. Encarquilho a cara e agito o nariz. Bocejo de boca aberta e a língua sobe-me ao céu-da-boca. Visualizo a imagem vaga e modelo que o meu cérebro atribui a um gato. Sempre sou felina em qualquer coisa. Ou tornei-me? Sempre bocejei assim? Não me parece. Agora sempre bocejo assim.
Bocejo novamente, desta vez fecho também os olhos. Coço-os. Também eles se queixam. A única atenção que lhes dedico é agressiva e invasiva. Não apreciam as visitas perfuradoras dos meus dedos indelicados e das minhas unhas amoladas. Muito indignados, retrucam que apenas se manifestam por desleixo na minha higiene ocular. Eu sou a culpada das minhas maleitas. Já sei do que falam. Escarafuncho um pouco mais para os calar.
Mapeio o rosto. Sinto as suas protuberâncias e irritações. Oleosidade. A minha auto-estima projecta um mapa topográfico severo. Suspiro de desalento.
Contemplo a persistência da existência. A tenacidade do meu conjunto.
Levanto-me.

Lili

You is I. We are not equal.

"I don’t believe in equality of sexes. I can’t stand the idea of respect between lovers. I find the concept of roles disgusting. There is no democracy, negotiation, exchange of goods, compromise, middle way, balance of interests, symbiosis in the core encounter between a man and a woman in love. There shouldn’t be.

I believe in two movements: surrender and overtaking. Keywords: pervading, self-canceling, taking over, submitting, vibrating, shaking, freezing and burning at the center of gravitational pull that makes you a victim and a victor at the same time. You’re always less and always more, unable to locate, name and discuss what is that force that fuse you to a particular other in a way that surpasses any practical and reasonable goal. It’s self-destructive, suicidal, it’s makes you alive and builds a frame in which you know you’re eternal. In which you can die without a second thought.

Erase this dimension and you end up in a comfortable cohabitation, where lovers become roommates, where impossible becomes nice, where danger becomes comfort, where vision becomes conversation, where ecstasy becomes exchange, where drive becomes compatibility.

‘You is I’ is about merciless eradication of oneself, of the other. Doesn’t really matter. It’s the identity where one always loses to the other. Where one’s ground and desire exists completely in the way the other moves. Where both are enslaved to the memory and the promise of the otherworldly touch. Like in Eucharist where god is chewed, sucked and swallowed. Where teeth and tongue meet a shot of grace. It’s the blindness that’s clairvoyant, the loneliness that is fused, the loss that feels like being finally found. Even if your next church will be psychiatric ward.

What can you do with such a starting point? Maybe all, maybe nothing. But surely nothing in between. Can you build on it? Doesn’t matter. Practically, it can be heaven or hell. Probably both. But you can definitely – Be. And become. Keeping yourself on the sharp cutting edge, in the eye of the storm, in the reality which doesn’t give you time-out to check what’s in the fridge or in the news. There is no prior place. It’s the zero point to which everything else collapses, and without which everything else becomes exactly that: ‘everything else’."


O texto original e o seu autor podem ser encontrados aqui

Lili

Sunday, November 28, 2010

Could I borrow your life manual? I seem to have misplaced mine...


I wanted to call you and hug you and tell you all about the most wonderful boy, the stupidest boy, that went and fell in love with me and how he doesn’t want to be friends anymore… But then I remembered that was you. And I remember I am me. And the encompassing darkness descends.


I’m sorrier than you’ll ever know.

Lili

Thursday, November 25, 2010

Hoje é um dos Muitos Dias

Há dias em que mais valia ficar na cama. Levantamo-nos de manhã para o xixi da praxe e estamos com má cara. Quando estamos a voltar à casa-de-banho para o banho, alguém já está a ocupá-la e temos as nossas coisas todas lá dentro. Não há na cozinha o que apetece comer. Saímos pela porta já atrasados e ainda perdemos o autocarro.

Mas também há dias em que tudo corre bem. Levantamo-nos de manhã depois dos vinte minutos de pré-acordar que o botão de snooze nos ofereceu e sorrimos para o nosso reflexo no espelho. A roupa que nos apetece usar está toda lavada e cheirosa e parece assentar mais perfeitamente que nunca. Não temos fome, mas a peça de fruta que escolhemos para não ficarmos de estômago vazio mais do que saber bem, é a ideal. Saímos pela porta já atrasados, mas conseguimos chegar dez minutos antes sem sequer percebermos como.

Hoje foi um desses dias. O mp3 presenteou-me com músicas que eu nem sabia que me apetecia ouvir. Percorri desorientadamente a zona do Saldanha em busca de uma entrevista de trabalho, na qual gostaram de mim, na qual me chamaram. Desci para Arroios até ao oculista, porque a minha armação já tem uma certa idade e chegou a andar de fita-cola, à Harry Potter. Os óculos já os tinha escolhido e eram mais giros do que eu me lembrava. Experimentei lentes de contacto pela primeira vez e foi uma aventura de pestanejares e lacrimejares. A minha cara estava tão perto do espelho que só me via a mim, mas achei-me linda. Mesmo com as rugas de expressão na testa e com as ruguinhas de sorrir nos cantos dos olhos. Linda, principalmente porque, quando sorrio, os olhos também se riem e a bochecha esquerda oferece uma covinha.

De lentes postas, cheia de comichões novas, subi até à Avenida de Berna, para voltar à faculdade onde acabei um curso, mas que foi muito menos minha do que a Ravara, dos tempos de Enfermagem. Enquanto esperava, resignadamente tirei o The Catcher in the Rye da mala para continuar a leitura e eis que um livro que até então pouco ou nada me dissera, de repente me atira com duas passagens de encher o olho.

Até que lá reencontrei os meus companheiros portugueses de Erasmus e muita conversa havia para pôr em dia. Foi óptimo vê-los, iguais mas diferentes, apaixonados e a sobreviver ao fim do amor. Foi bom lembrar Londres, a cidade que é também nossa. A cidade que, sempre que voltamos, parece que nunca abandonámos. Porque já sabemos de cór as formas mais rápidas de chegar onde quer que seja, porque já temos os nossos spots de eleição, porque estamos bem cientes daquilo com que podemos contar.

Foi fantástico estar sentada na esplanada amarela a ouvi-los e relembrar-me do porquê de fazerem parte da minha história. Relembrar-me que tomar café com eles vai sempre encher-me o peito de calor. Relembrar-me que gosto mais deles do que me ocorre na banalidade do quotidiano.

Soube bem reencontrar professores, perceber que eles ainda se lembram de mim, que gostam de mim. Descobrir novas coisas em comum.

Foi bom palmilhar o centro de Lisboa a pé, só porque sim. Porque faz bem, porque tenho tempo, porque tenho música.

Foi maravilhoso abafar o desejo por castanhas, porque não as há à mão, porque não me posso dar ao luxo de dispensar 2€, apenas para voltar a casa e apanhar a mãe a prepará-las para depois do jantar.

Foi agridoce ir à casa do meu Nabo, de visita a Lisboa, para me despedir dele e, apesar de custar sempre vê-lo partir, só pode ser amor o que me faz estar ali, na casa dele, na hora de dizer adeus às pessoas que mais lhe importam.

Houve várias coisas que faltaram no meu dia. Há pessoas que eram o mundo e que parecem estar a deixar de o ser. Mas hoje não é o dia para querer saber disso.

Hoje é o dia para me achar capaz de tudo. Hoje é o dia em que acredito, em que sei, que espere-me o que esperar, vou ter uma vida cheia. E, um dia, vou olhar para trás e chamar-lhe plena.


No regresso a casa, enquanto esperava pelo metro na estação do Saldanha, deparei-me com a célebre citação de Almada Negreiros na parede. Uma que já antes me prendera a atenção:

"As pessoas que eu mais admiro são aquelas que nunca se acabam."

É isso que eu quero ser. Uma pessoa que nunca se acaba.

MJNuts

Wednesday, November 24, 2010

It Gets Better

Não estou bem a par do que se passou, apenas sei que, de repente, os Estados Unidos acordaram para a problemática da homossexualidade e da dor que isso constitui para muitos jovens e adolescentes. Estou em crer que, num espaço de tempo reduzido (uma semana?), imensos miúdos gays se suicidaram e outros foram vítimas de violência, coisa que, finalmente, chocou a América.

Como tal, deu-se início à campanha It Gets Better. Já várias figuras ilustres vieram a público dizer que realmente tudo melhora, que os miúdos só têm de aguentar aquela fase difícil do crescimento em que ser diferente é ser anormal, em vez de ser especial. Acredito firmemente que sim, que tudo melhora, que tudo vai ficar bem. Não é à toa que a citação mais antiga que me acompanha é uma de Shakespeare, "Não há noite tão longa que não encontre o dia". Não há. Em nenhum lugar deste planeta, há noite que dure para sempre.

E por isso, veio o Obama (sim, também o Presidente), o Tim Gunn, a Ellen Degeneres, o Adam Lambert, até a Ke$ha afirmar que tudo vai melhorar... Mas ninguém o fez como a Pixar:



Ninguém sabe porquê, mas o cinema de animação toca-nos num sítio do coração a que os outros filmes não chegam. Talvez esse sítio se chame inocência. Talvez se chame simplicidade. Ou talvez seja apenas amor.

É por isso que, quando a Pixar me diz que tudo vai ficar bem, eu acredito.

MJNuts

Saturday, November 20, 2010

Lembra-te Quem És

Gloriosos miúdos perdidos. Aos caídos por aí.


Eu sou uma deles.

MJNuts

Monday, November 15, 2010

You Know Who I Am

Mais pelo vídeo do que pela música ou pelo artista.



Gosto de poder relembrar-me disto.

MJNuts

Saturday, November 13, 2010

How to Train Your Dragon


"Everything we learned about you... is wrong."

MJNuts

Wednesday, November 10, 2010

AAARRRGGGGHHHH!

Alguém me pode explicar porque raio é que as novelas da TVI (que eu tenho de ouvir enquanto estou ao computador devido a hábitos parentais que não mudam) agora insistem em pegar em melodias pré-existentes e pôr uma letra qualquer portuguesa que encaixe ali?

Já fiquei extremamente irritada quando aquele NOJO dos Perfume que pôs meio mundo em polvorosa tinha acordes copiadíssimos da Your House da Alanis Morissette; gostei muito pouco quando andava por aí a soar uma música que era a versão tuga da Behind Blue Eyes (que eu nem gosto), mas quando oiço os acordes da versão Gary Jules da Mad World e depois a letra me começa em português?!? ARGH!

Parem, por favor. Para letras portuguesas de originais estrangeiros, tínhamos os Onda Choc, que cumpriram mais que bem o seu dever.

MJNuts

Monday, November 8, 2010

Before Sunrise+Before Sunset


A primeira vez que vi Before Sunrise, foi por puro acaso. Já lá vão eternidades. Olha o Ethan Hawke na televisão! Que será isto? Não fazia ideia ao que ia. Estavam dois jovens a falar num eléctrico e o que me fez ficar em vez de mudar de canal foi a conversa que já vos mostrei noutro post.

Entretanto, surgiu a sequela, Before Sunset. No já ido ano de 2004. Muito falei de ir ver o filme ao cinema e depois de o ver em casa, mas nunca aconteceu. Até que falei do Before Sunrise a um amigo, porque tinha tudo para ele gostar, e vimo-lo em conjunto. Adorei. Adorei a inocência da juventude, os sonhos, os impulsos. A coragem de sair de um comboio com um estranho. As deambulações por uma cidade que, naquele dia, só poderia ser perfeita. As conversas são magníficas. Verdadeiras. Recheadas de ideias loucas que fazem sentido na cabeça mas, quando expressas por palavras, parecem caóticas e confusas. Hesitantes, repletas daquelas expressões irritantes de que todos abusamos a falar (I mean, you know, like...) mas que simplesmente fazem parte do discurso falado.

O primeiro filme retrata um período inferior a 24 horas que, para aqueles dois jovens, foi extraordinário. O fim eminente marcou a intensidade da experiência. Entregaram-se, simplesmente. Sem medos. Viveram, não, sugaram a Vida de cada momento que partilharam.

Até ao instante em que tudo acabou e se deixou a promessa do reencontro.

Nove anos depois, temos Before Sunset. Como não podia deixar de ser, a preferência pelo primeiro é geral. Mas eu acho que, juntos, formam um todo melhor do que qualquer uma das partes separadas.

À inocência da juventude junta-se a experiência trazida pela idade. O desencanto. O desapego. Vemos o resultado das expectativas que deixaram de o ser. Os desencontros. A dor do ter de se contentar. Ou achar que se tem de o fazer.

E é curioso como ambos depositaram tanta esperança naquela uma noite, há nove anos atrás, e como tudo o que se seguiu foi pálido em comparação.

É uma bittersweetness que faz doer e sorrir. E identifico-me tanto com a Celine que o meu coração se parte em renovados pedaços.

Celine: I guess when you're young, you just believe there'll be many people with whom you'll connect with. Later in life, you realize it only happens a few times.
Jesse: And you can screw it up, you know, misconnect.


Jesse: I feel like if someone were to touch me, I'd dissolve into molecules.

MJNuts

Às vezes, gosto de crescer. Outras vezes, isso só me faz pensar que estou num comboio só de ida para a solidão.

Monday, November 1, 2010

Before Sunrise

Jesse: Do you believe in reincarnation?
Celine: Yeah. Yeah, it's interesting.
Jesse: Yeah, right. Well, most people, you know, a lot of people talk about past lives and things like that, you know? And even if they don't believe it in some specific way, you know, people have some kind of notion of an eternal soul, right?
Celine: Yeah.
Jesse: OK, well this was my thought: 50,000 years ago, there are not even a million people on the planet. 10,000 years ago, there's, like, two million people on the planet. Now there's between five and six billion people on the planet, right? Now, if we all have our own, like, individual, unique soul, right, where do they all come from? You know, are modern souls only a fraction of the original souls? 'Cause if they are, that represents a 5,000 to 1 split of each soul in the last 50,000 years, which is, like, a blip in the Earth's time. You know, so at best we're like these tiny fractions of people, you know, walking... I mean, is that why we're so scattered? You know, is that why we're all so specialized?
Celine: I don't know. Wait a minute, I'm not sure...I don't...
Jesse: Yeah, hang on, hang on. It's a, it's a totally scattered thought. It... which is kind of why it makes sense.

MJNuts

Wednesday, October 27, 2010

Singularidades

Há cerca de dois anos (um ano e meio?), numa das minhas noites cibernéticas, dei com um blog que me chamou logo a atenção. Gostei da forma como a autora escrevia, das pequenas histórias sobre a sua vida, do coração que ela lá punha. Gostei do tanto que ela tinha em comum comigo, que me faz tanta falta. Em cima de tudo isso, ela estava a viver em Londres e, há cerca de dois anos atrás, quem estava prestes a ir viver para Londres era eu, portanto agradava-me bastante a perspectiva de alguém como ela, uma portuguesa a viver fora pela primeira vez. Por isso adicionei-o aos meus favoritos e comecei a comentar regularmente. Ela, por sua vez, passou também a visitar o Tretas.

Ao ler um dos seus posts, certa vez, senti-me tão próxima do que ela estava a contar e ainda mais do que ela estava a esconder que não pude evitar deixar-lhe lá um simpático "Às vezes gostava de não ser uma simples comentadora do teu blog e ser mais próxima de ti (não me leves a mal), porque as tuas histórias contadas aos bocados e através de metáforas deixam-me uma sensação agridoce de curiosidade e preocupação...". Apeteceu-me. Se calhar é estranho, não tenho noção do protocolo social. Mas a verdade é que ela me mandou um mail, adicionámo-nos no MSN e assim começámos a conversar.

Sempre tivemos tendência para conversar longas horas sobre tudo e nada. Começou bem cedo. Não me lembro da primeira conversa, mas não teve aqueles horrores iniciais da horda do "tudo bem?" ou "então, que fazes?". Sei lá, fluiu a conversa. Nos dois sentidos, sempre. Ora ia eu falar, ora vinha ela.

Tornámo-nos amigas. Ou tão amigas quanto nunca ter estado ao vivo com uma pessoa pode permitir. Nunca vi a Isa (sem ser por fotografias) nem nunca lhe ouvi a voz, mas nestes meses todos que falámos, ela tornou-se importante para mim. Era uma espécie de meu diário, contava-lhe tudo até ao mais ínfimo pormenor. Fazia-me sempre sorrir nos dias em que estava mais em baixo.

Acima de tudo, a Isa era um exemplo. De coragem, de luta, de entrega. Soube assim que a conheci da sua grande história de amor, daquelas dignas de filme, com dramas e outras pessoas pelo meio e até funerais. Uma história de amor daquelas que vale uma vida inteira. A Isa não deixou de ser quem era e de fazer o que queria por amor, ela fez tudo. Mas simplesmente apercebeu-se que, para ela, o amor valia muito mais e correu atrás dele. E foi por isso que eu nunca a conheci pessoalmente: uma mera semana antes de eu chegar a Londres, ela estava a partir para NY para continuar a sua história de amor.

A Isa fazia-me acreditar no amor e na força dele. Fazia-me acreditar em mim, apesar da minha óbvia nabice no assunto. Contava-me as mais incríveis histórias de coisas que já lhe tinham acontecido. Gozava comigo quando era devido. Falávamos de cultura: séries, livros, filmes, música. Achava amorosa a tendência dela para grandes artistas mainstream, à la Madonna e Lady Gaga. Falávamos imenso sobre cusquices de celebridades, só porque tem piada. E ela falava-me de como é viver em NY e de como são os americanos no seu habitat natural. O que eu me ria com as desventuras que ela tinha no emprego...

E aquele amor imenso que me enchia de esperança...

A Isa era a receptora do mail que eu enviava quando não conseguia dormir porque tinha o peito cheio. Era a pessoa que me enviava mails a contar o que andava a fazer ou a enviar-me links parvos, porque nem sempre se tem vida para passar muito tempo no computador, apesar de, em média, falarmos uns 4 dias por semana.

A Isa "desapareceu" há 3 meses. Desde Julho que não sei nada dela. E isto é um pouco horrível, porque afinal como se pode saber de uma pessoa que nos é próxima apenas pela Internet se ela desapareceu da Internet? Eu sei que deve haver muita gente que não compreende e a quem isto não faz sentido, só que eu posso nunca ter dado um abraço à Isa, mas mostrei-lhe o meu coração. Ela era o melhor que eu podia tirar das horas passadas ao PC. Nunca falhava em deixar-me melhor, mais leve.

E não consigo perceber porque é que essa parte da minha vida cibernética desapareceu... E preocupo-me. Mando mails à falta de outra forma possível de contacto. Abro a inbox e é sempre uma desilusão não ver nada dela por lá. E às vezes questiono-me se ela existiu mesmo ou se a inventei, porque quem é que não tem Facebook hoje em dia? E depois acho que ela nunca desapareceria para todo o sempre sem me dar um aviso, mas ao mesmo tempo prefiro acreditar que ela está tão feliz e passou para uma fase tão melhor na sua vida que, ao passar para lá, não houve oportunidade para uma despedida. É sempre melhor pensar assim do que nas alternativas negras.

Mas tenho saudades dela. O pós-concerto da Lady Gaga vai perder um pouquinho da sua piada porque não vamos trocar impressões sobre as nossas experiências, a dela nos US, a minha cá. Queria mostrar-lhe a Florence e saber a opinião dela. Queria que ela soubesse o quanto cresci neste último ano e a importância que ela teve nesse processo. Queria que ela se orgulhasse da forma como me apercebi de padrões e os comecei a combater. Queria que ela me dissesse que estou errada, que não devia deixar o amor para segundo plano. Queria dizer-lhe que vi o primeiro episódio de The Good Wife e adorei. Queria que ela soltasse um dos seus discursos de bom humor exasperado devido à minha franqueza e aos meus acidentes de percurso. Queria ter mais debates animados sobre quem é gay ou deixa de ser. Queria que ela me mostrasse poemas e me citasse Jorge Amado. Queria mostrar-lhe coisas que sei que ela iria adorar e esperar pela reacção dela.

Acima de tudo isso, quero que ela esteja bem e feliz. Quero que ela esteja com quem ama.

Bolas, miúda, já o mereceste! Vê lá se estás a deitar a América abaixo com a tua fixeza, sim? Os americanos bem podiam aprender contigo.

Não me esqueço de ti.

MJNuts

Monday, October 25, 2010

Elogio do Amor Puro

"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho ...para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que eu quero é fazer um elogio do amor puro.

Parece que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Teixeira de Pascoais meteu-se num navio para ir atrás de uma rapariga inglesa com quem nunca tinha falado. Estava apaixonado e foi para Liverpool.

Quando finalmente conseguiu falar com ela, arrependeu-se.

Quem é que hoje é capaz de se apaixonar assim? Hoje em dia as pessoas apaixonam-se por uma questão prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão mesmo ali ao lado. Por que se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornam-se sócios. Reunem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psicosócio-bio-ecológica da camaradagem. A paixão que devia ser desmedida é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas e cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, babanóides, borrabotas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim da tristeza, o desequilibrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, apancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Por onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, fado, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassado ao pessoal da pantufa e da serenidade.

Amor é amor. É essa a beleza. É esse o perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.

O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para se perceber. O amor é um estado de quem se sente.

O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.

Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperante. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa e o amor é outra. A vida dura uma vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."


Miguel Esteves Cardoso, in Expresso

MJNuts

Friday, October 22, 2010

Bruxelas

Foi o meu telemóvel que me informou que tinha chegado à Bélgica. A horas indecentes da manhã (para um Sábado português, pelo menos), recebi uma mensagem. Estranhei, tirei o bicho do bolso e era a Vodafone, simpaticamente a avisar-me que as chamadas ali custam X se efectuadas e Y se recebidas.

Não me podia ver, à falta de espelho, mas sei que o meu rosto fez aquela expressão de surpresa agradável e o meu corpo o acompanhou, sobreergueu-se no assento do comboio e as mãos pousaram no vidro.

Que feia que é a Bélgica que os carris atravessam. A Holanda é bonita, sim, apenas monótona. A Bélgica é feia. E não é feia de uma fealdade marcante, que trespassa o espírito e se instala na memória (como a Polónia), é de uma fealdade simples. Não atrai nem deslumbra, mas tem pormenores interessantes. De uma mediania peculiar que revela contentamento com o que se tem.

Nunca tive curiosidade em ir à Bélgica. Quando a minha mãe era nova, passeou Europa fora de roulotte (a cabra! a mim nunca me levou de caravana a lado nenhum!). Disse-me maravilhas da Áustria e da Holanda - que se confirmaram -, falou-me fascinada das diferenças entre a Alemanha Democrática e a Alemanha Federal, também me contou dos belos castelos e paisagens do Luxemburgo e não me lembro do que disse da Suiça. Da Bélgica... "Nhé. É feiota. Não vale muito a pena." E com essa impressão fiquei para todo o sempre, a da Bélgica como um país menor.

E portanto não fui a Bruxelas porque queria, fui a Bruxelas porque era a única forma de rever uma pessoa que me é muito especial, provavelmente num espaço de nove meses. Por isso não tenho grandes recordações de Bruxelas enquanto lugar. Estava mais ocupada a viver Bruxelas no mundo dos sentimentos e das sensações.

Lembro-me da Grand Place, tão embaraçosamente pequena que seriam precisas três dela para encher a Praça do Comércio (mas é bonita, apenas... não é suficiente). Lembro-me do cheiro a waffles, que não me surpreendeu nada porque por cá também os há e eu até prefiro panquecas e crepes... Lembro-me do velhote a tocar viola, a versão magra do Pai Natal, e do quanto gostava de tocar a Tears in Heaven e a Hotel California, uma e outra vez. Lembro-me do corredor que me foi apresentado como sendo parecido a Covent Garden (achei-o mais interessante, por acaso). Lembro-me das cores pastosas e doentes do metro e dos inúmeros anúncios de queijo - porque fromage deve ser a palavra francesa que mais digo. Abat-jour?

Não vou recordar Bruxelas e a Bélgica como locais que me apaixonaram, mas vou sempre recordar-me com carinho dos dias que lá passei.

Das conversas na casa-de-banho. Da mesa no centro do quarto, junto à janela. Do sotaque francês a falar inglês, o meu sotaque preferido. Das buscas eternas por postais decentes. Dos chocolates.

Da noite nos subúrbios, que se pareciam inesperadamente com Londres. Do céu impossivelmente estrelado em que vi-as todas, contei as constelações todas e, mesmo sem querer, reencontrei a Ursa Menor.

Em Bruxelas, parei para pensar sob as estrelas e apercebi-me de muitas coisas. Da prisão das nossas vidas. De como tudo nos pode prender: dinheiro, emprego, estudos, pessoas. De como as maiores amarras somos nós que as atamos nos nossos próprios pulsos. De como arranjamos desculpas e mais desculpas para fazer ou não fazer determinadas coisas. De como nos deixamos ficar em situações não ideais só porque por agora serve. E de como isso se arrasta indefinidamente até que se passam anos em que existimos sem viver. De como o medo controla as nossas vontades, de como a preguiça domina as nossas acções. De como a mente tenta vencer o coração.

Em Bruxelas descobri que a marca estranha que tenho na mão direita desenha, no centro da palma, um coração.

Espero que ele vença sempre.

MJNuts

Thursday, October 21, 2010

Holanda

Larguei a Noruega, com muita pena minha mas não tristeza, porque fi-lo para regressar a Amesterdão, a cidade onde já fui tantas vezes que quase lá circulo tão bem como em Lisboa ou Londres.

Depois da explosão de sentidos que foi a Noruega, estava à espera que voltar à capital holandesa tivesse um sabor morno. Mas não. A excitação que me consome sempre que saio de Amsterdam Centraal ainda é a mesma que me alimenta a alma e me arranca sorrisos. É uma espécie de boas-vindas que já é tradição (porque pareço chegar sempre à noite): o céu escuro, as luzes amareladas dos candeeiros, os letreiros das lojas, hotéis e afins, os tons castanhos e laranjas da própria cidade. Os trems e as bicicletas. E já tanta estação de comboio percorri, mas não há igual a Amsterdam Centraal...

Amesterdão, por si só, é sempre uma experiência diferente. Ajuda muito que, sempre que eu lá vá, escolha alojamentos que não lembram a ninguém. A única vez que escapa é a primeira, em que fiquei num hotelzinho simpático que basicamente personificava o que a minha imaginação constrói sempre que reservo cama num hostel ou pensão. A segunda também não é má de todo, fiquei em casa de um colega da escola básica. Mas não o via há anos e crescemos tão diferentes e depois a própria atmosfera da casa deixou em mim uma recordação algo agridoce de um conforto desconfortável.

A terceira vez merecia toda ela um post. Quatro pessoas enfiadas num quarto de um prédio (prédio-casa, é sempre assim na Holanda) pertencente a uma velha alemã cujo marido era judeu. Velha essa que era bastante amorosa, mas muito intrusiva. E que, suponho que sem o saber, tinha a casa repleta de janados, gente perdida da vida, vindos de todos os cantos do Mundo, que estavam em Amesterdão para consumir droga da mais variada até uma qualquer brilhante ideia os libertar daquilo. Vou assumir que partilhar o seu espaço por 10€/noite, na bem cara Amesterdão, vem com esse preço. Os janados, pelo que percebi numa conversa surreal com uma nova-iorquina que estava a tripar em ácido apesar do seu ar perfeitamente normal, muitas vezes não tinham o dinheiro para lhe pagar e o que davam em vez disso à velha era o seu tempo e atenção. Todos os momentos que passei naquela casa foram envoltos num ambiente de bizarria que nunca pensei que existisse na vida real.

E bem, desta vez, fiz CouchSurfing. Isto há sempre formas de viajar barato. A casa tinha 5 andares e 10 estudantes lá enfiados e que posso eu dizer? Limpar não era com eles. E tendo em conta que a minha amiga norueguesa tem traços de obsessão-compulsão no que diz respeito a limpezas e germes, isso deu origem a situações bastante caricatas. "I'm just gonna imagine we're camping in the woods", dizia-me ela. Tínhamos de ir à casa-de-banho juntas porque ela não queria tocar em nada nem queria pousar as coisas em lado nenhum. Foi mais uma óptima oportunidade de bonding entre nós as duas, após sermos colegas de quarto em Viena e estarmos juntas 24/7 na semana da Noruega.

Normalmente, quando vou a Amesterdão, não me preocupo com caminhos, vou atrás de quem percebe mais disso que eu. Mas se o meu sentido de orientação mal dá sinais de vida, o da K. não existe, ponto final. Por isso, fui obrigada a assumir esse papel. E que bem que me soube saber sempre em que direcção ficava a casa ou o Red Light District ou a estação... Só me aumentou a sensação de que Amesterdão também é, cada vez mais, casa. Apesar de nunca lá querer viver. Paradoxos pessoais.

Mas não vos quero falar de Amesterdão. Porque Amesterdão mantém-se a minha cidade preferida.

Quero falar-vos da Holanda. A Holanda, que era um país que eu adorava e admirava. Os prados, as paisagens, os animais, as pessoas.

À quarta vez que por lá passeei, a Holanda não me inspirou minimamente. Fui a Utrecht e adorei, a cidade é maravilhosa. Mas o país em geral, olhando para lá da janela do comboio...

Sempre plano. Sempre verde. Sempre com moinhos ou flores ou ovelhas. Sempre as mesmas casas de madeira. Iguais. Sem um pingo de personalidade.

Mas foi sem dúvida a planura toda que me cansou. Lembro-me de confessar a minha paixão pela Holanda à C., a leader holandesa em Viena, e de ela não perceber porque havia eu de gostar tanto do país. Que era bonito, sim, mas aborrecido. Rotineiro.

Atravessando a Holanda de comboio para conseguir chegar a Bruxelas, percebi o que ela queria dizer. Em duas horas de paisagens, nada vi que me apaixonasse, que me prendesse a respiração, que me apagasse da mente as palavras que insistem em querer explicar o que os olhos vêem.

Era só aquilo. Quilómetros e quilómetros de verde plano, com exactamente as mesmas construções ou animais ou vegetação a adorná-lo. Não me deixei dormir porque também gosto de sentir desencanto, gosto de sentir o tédio e a vulgaridade. Gosto de os saborear para poder dar valor ao que a eles se sobrepõe.

Na minha quarta vez na Holanda também gostei menos das pessoas. As pessoas tão bem vestidas e quase bonitas, muito educadas. As pessoas que ficam ali num meio-termo indeciso da androginia: os rapazes com aquele corte de cabelo comprido, ondulado, penteado para trás; as raparigas de andar patareco. Eles tão delicados que elas parecem brutas sem o ser.

Foi aí que percebi que, dada a minha paixão por Amesterdão, vou sempre gostar de holandeses, apenas dificilmente os poderei vir a amar.

Mas adoro comboios e o céu estava azul e o sol batia-me nos olhos. A Holanda pode não ser o amor da minha vida, mas quer-me bem.

MJNuts

Wednesday, October 20, 2010

Noruega

Saí de Londres muito mal dormida, de madrugada, rumo a um país que nunca tinha visitado e do qual sabia pouco. Sempre que pensava em países nórdicos, vá-se lá saber porquê, tinha o sentido na Suécia e era lá que queria ir primeiro. Finlândia em segundo lugar. Mas a Vida troca-nos sempre as voltas.

Este Verão fui leader da delegação portuguesa numa Village do CISV, a Flower Power Village em Viena. Para quem não sabe, o CISV é uma organização internacional que visa trocar experiências entre culturas, com vista à educação para a paz. Building global friendship, dizem eles. Não podiam ter mais razão.

Graças ao CISV, travei amizades com pessoas que vão duma ponta à outra do Mundo e isso, para uma pessoa aventurareira que nem eu, é o melhor que pode haver. E foi assim que arranjei uma amiga na Noruega. Que foi a melhor anfitriã com que se poderia sonhar...

E a Noruega... Não há palavras. Acho que é o país mais lindo em que já pousei o olhar. Suponho que ajude o facto de eu preferir paisagens montanhosas ou com um toque de Inverno.

Toda a semana que passei na Noruega foi uma experiência única. Por estar com uma norueguesa, pude vivenciar o estilo de vida deles, os horários, os hábitos, a alimentação. E que diferente que é ser noruguês!

Eles, assim que chegam a casa, tiram logo os sapatos. Às vezes nem entram em casa, deixam-nos à porta. Jantar para eles é entre as 15h e as 18h, coisa que causou muita picardia entre mim e a minha amiga. Bebem imenso café, a toda a hora. Não é a nossa bica, é uma caneca inteira de café. E outra e mais outra. Parecem os ingleses com o chá. Estão habituados ao Inverno e adoram-no. Quando começa a chegar o tempo escuro, refugiam-se em casa a tricotar. Na Noruega, não é preciso comprar luvas porque eles tricotam-nas uns para os outros. Pareceu-me uma tradição adorável.

A Noruega é cara como nunca vi. Ainda bem que o meu alojamento era gratuito... Não há uma única refeição, no mais manhoso dos restaurantes, que custe menos de 10€. E isso já é ser barato! Mas os preços foram a única coisa da Noruega que não gostei.

Apaixonei-me pelo país assim que aterrei no aeroporto de Oslo. Talvez ainda antes de aterrar. Quando as atribulações aéreas me acordaram e olhei para lá da janela, esperava-me um sem fim de pinheiros na paisagem. Mas achei-os apaixonantes porque o Outono tornava-os todos diferentes: havia os ainda verdes, os vermelhos, os laranjas, os amarelos... Esqueço-me sempre das saudades que tenho do Outono da minha infância. Do Outono que Lisboa ainda tinha.

Estava sol e não senti frio quando pus o pé cá fora. No aeroporto, que é o maior do país, reinava um silêncio sepulcral que me fascinou. Adoro o burburinho dos aeroportos e das estações de comboio. É uma espécie de estática agradável que, na azáfama das nossas mentes, se confunde com silêncio. Mas ali não. Ali o silêncio estava no aeroporto e a estática estava na minha mente. Tratei de a eliminar de imediato para simplesmente apreciar o momento. E sorrir.

Oslo é uma cidade pequena. Eu por acaso até prefiro cidades pequenas para turismo. Não tem nada de especial. É acolhedora, bonita. Tem um fjord que para os habitantes de Oslo há-de ser uma versão do mar onde instalaram uma bonita e pacata marina. E que agradável que é subir àquela colina e sentar nos bancos de jardim, mesmo no topo da encosta, a sentir a brisa e o sol no rosto, a vê-lo reflectir na água lá em baixo.

Oslo tem também o que me parece ser uma das minhas construções humanas preferidas. Talvez a preferida. Mas talvez tenham sido as condições em que a vi.

O parque mais famoso de Oslo é o Vigeland Park. E é o mais famoso porque tem um corredor imenso ladeado de estátuas de nus que culmina numa escadaria onde, central, imponente, está um monólito. Chovia imenso quando lá fui, o parque estava vazio. As estátuas, que deveriam ser cinzentas claras, estavam cinzentas escuras por estarem molhadas. O silêncio norueguês envolvia-me, assim como o Outono.

Normalmente, quando penso em estátuas de nus, lembro-me daquelas estátuas fisicamente perfeitas da época clássica ou do Renascimento (à la David, do Michelangelo). Mas aquelas não. Eram apenas corpos nus, como o meu, como o vosso. Gordos, altos, magros demais, perfeitos, baixos, mal-feitos. Corpos. Aquelas estátuas representavam a humanidade despida de tudo, até da roupa. E, quando a humanidade se despe, só resta o essencial: sentimentos e relações. Passo após passo, olhando para a esquerda ou para a direita, via universos pessoais transformados em estátuas. Pais a brincar com filhos, amantes a discutir, uma criança a fazer birra (que é, estranhamente - digo eu -, a mais famosa das estátuas), mulheres felizes, homens tristes, velhos a chorar a morte, intelectuais a observar o horizonte, casais de homens, casais de mulheres, famílias... Era um espectro infinito de emoções humanas até perder de vista.

Senti-me tocada por tudo aquilo. Falou-me directamente ao coração, de uma forma que costuma chegar tão mais facilmente através de livros, cinema/televisão, música... Parei momentos sem fim diante de uma rapariga, jovem aos meus olhos, com a cabeça enterrada no peito de um rapaz, os punhos contra os peitorais dele. Chorava. Ou a chuva fez-me pensar que sim. Ele abraçava-a como podia e era dor o que li na sua expressão.

Eram só estátuas, mas eu ali vi e senti Arte. E senti-me pequena ao chegar junto do monólito e aperceber-me que não era só mais uma gigantesca pedra fálica. Era um amontoado de corpos nus tão íntimo, tão entrosado, que não se percebia onde um corpo acabava e outro começava. Apeteceu-me trepá-lo e sentar-me no topo, ser mais uma deles. Mas eles eram cinzentos e a minha vida ainda tem cor.

Saí de Oslo para ir a um casamento numa terrinha cujo nome nunca consegui pronunciar, quanto mais escrever. A paisagem norueguesa é... bela. Nem gira, nem linda, nem bonita. É bela, porque é Beleza a tomar forma. As montanhas, os cumes, as casas de madeira. A variação de cor das folhas das árvores, o nevoeiro. Para onde quer que olhasse, o meu cérebro parava por não conseguir expressar-se ante as visões diante dos meus olhos.

Perante a Noruega, deixei de conseguir adjectivar.

O casamento foi uma das experiências mais curiosas da minha vida, mas já noutro lado falei dele e perco-me sempre a tentar expressar o que cá vai dentro. Não percebi nada do que se disse, mas qualquer ser humano é sensível à emoção noutro tom de voz, à linguagem corporal, às canções.

Fiquei a saber que os noivos se conheceram porque, após tirar a carta, a noiva resolveu ir com a melhor amiga fazer aquela brincadeira parva em que se seguem carros aleatórios. Acho que o sorriso parvo que se plantou no meu rosto deve ter durado mais do que o socialmente aconselhável, mas quis lá eu saber. Podia sempre escudar-me na minha nacionalidade e fazê-los pensar que os portugueses são todos idiotas sem grande sentido de etiqueta.

Quando a música finalmente parou (e passava das 3 da madrugada e por lá os casamentos podem durar até de manhã...) e as pessoas começaram a sair, o céu resolveu desabar e a neve caiu. Foram as primeiras neves do norte da Noruega desde que o Verão chegou ao fim. Foi a terceira vez que vi nevar na minha vida. Não há palavras para descrever a criança dentro de mim que ficou histérica de alegria por estar ali, naquele momento, com aquele simbolismo.

Os meus últimos dois dias na Noruega foram passados em Tromsø, a cidade onde a minha amiga estudou. Tromsø é uma ilha no meio de um fjord. Uma ilha de casas baixas e passeios curtos, que os autocarros facilmente atravessam de uma ponta à outra. Com a neve, as estradas estavam brancas assim como os tectos das casas de madeira. Eu adoro flocos de neve a cair, pois é impossível a minha imaginação pintar quadros mais bonitos que esse...

Não consigo mesmo pôr a Noruega por palavras.

À noite, parou de nevar e o céu ficou sem nuvens. Ao longe, na outra margem, conseguia ver as luzes das casas entrecortadas na paisagem e os cumes brancos de neve das montanhas.

Parada no meio da neve, enregelada, com os ténis enterrados e molhados, olhando para cima, vi o céu inteiro. Um paraíso de céu. E a Noruega ofereceu-me de presente a Aurora Boreal, ainda tímida, horas antes de eu ter de lhe dizer adeus.

MJNuts

Tuesday, October 19, 2010

Londres

O meu ano em Londres foi um ano muito intenso, para o bem e para o mal. Fui feliz, diverti-me imenso, sofri, chorei, passei fome, comi mal, comi fora, dormi em excesso, mal dormi, adorei pessoas que acabaram indiferentes, ignorei pessoas que acabaram adoradas. Viajei, perdi-me, encontrei-me, fui forte e frágil. Atirei-me ao mundo e entreguei-me às pessoas.

Fui para Londres com três objectivos: aprender a estar sozinha e a ser independente, fazer amigos pelo mundo fora para alimentar o meu vício de viagens e (vergonhosamente) ter algo com alguém de outra nacionalidade. Atingi os três. O último só me serviu para o ego, o segundo abre-me ainda mais um coração que já de si não se sabe fechar e o primeiro ajudou-me a tornar-me quem eu sou hoje. Foi o principal motivo que me fez simplesmente ir. Para completar o panorama, acabei o curso. Lá fora. Em termos pessoais, Londres diz-me que eu posso fazer tudo o que quiser se me der ao trabalho disso.

No meu ano em Londres, cresci mais do que nos três anos anteriores juntos. Tive um quarto meu, um quarto sem segredos, forrado a postais e poemas e posters. Um quarto que era um refúgio.

Abandonei esse quarto pela aventura e pela avareza e passei quase dois meses a dormir em chão e sacos-cama e sofás e camas por essa Londres fora. Vagueei de madrugada pela cidade, a ver o Sol nascer antes de conseguir encontrar almofada onde pousar a cabeça.

Atravessei a Waterloo Bridge mais vezes do que é possível contar e cumprimentei mais condutores de night buses do que me meti em double-deckers enquanto o sol brilhava.

Fiz vida de parque, à falta de praia. Deitada em cobertores ou toalhas de piquenique. A ler, a conversar, a sorver o sol como se fosse o bem mais precioso.

Vi uma lista infindável de peças e musicais. Vi o Wicked quatro vezes e deixei-o ser a banda sonora do meu ano.

Descobri barzinhos e pubs secretos, onde conversei horas a fio com quem me quis acompanhar. Dancei tantas horas de tantas noites que as contas perfazem dias. Dias da minha Londres passados a dançar.

"When you dance... It's like you're making love to music."

Mas a verdade é que, até este mês, guardava Londres cá dentro com alguma apreensão. Não tive aquele Erasmus impossivelmente louco que toda a gente parece descrever e isso fazia-me sentir que algo estava errado comigo. Como se não bastasse, pela primeira vez na vida, o meu espírito optimista e despreocupado que está sempre pronto para amar gentes sem medo de sair magoado foi quebrado. Foi quebrado inesperadamente e levou muito tempo a sarar essa ferida. Não sei se já sarou ou se a cicatriz tem duas semanas de idade, porque até voltar a Londres, eu tinha receio de voltar ali. De reencontrar aquelas ruas, aqueles lugares, aquelas sensações familiares. Tinha pavor de voltar a Londres e de instintivamente procurar quem só me trouxe dor, mesmo sabendo racionalmente que agora há um oceano a separar-nos.

Mas eu sou eu e voltei a Londres à mesma. Porque fiz mais amigos do que tive agruras, porque esses amigos se iam reunir. E lá fui, que nem filho pródigo a regressar a casa. Sozinha no avião. É impressionante o quão desenrascada fiquei nestas coisas de viagens (para qualquer lado!) em 2009 e 2010.

Foi imensamente estranho voltar a Londres... Porque parecia que nunca tinha de lá saído.

As pontes estão no mesmo sítio, o Big Ben continua a ser uma desilusão. O metro ainda é escuro e opressivo, os autocarros continuam brilhantes. Trafalgar Square ainda é a mais acolhedora visão nocturna que posso ter ao sair de uma discoteca. Os DVDs e CDs mantêm-se incrivelmente baratos na HMV. As livrarias não deixaram de expôr obras e obras infinitas numa língua que eu consigo entender. Aqueles cafés e Neros onde tantas horas passei, sozinha, a ler ou escrever, continuam a dar-me um chocolate quente que sabe a céu. Os meus spots ainda lá estão, à espera que eu lá vá sentar-me, sentir, viver.

E as pessoas, Deus, as pessoas... Como foi maravilhoso rever toda a gente! Como foi fantástico estar outra vez sob o tecto da Lili. Como a V. me voltou a surpreender, uma e outra vez, só por ser ela (porque já me tinha esquecido...). Como a L. continua tagarela e tão única nas suas peculiaridades. Como eu e a Frenchie não esquecemos o nosso hábito inato de estarmo-nos sempre a picar e a gozar. Como a C. está tão perto do meu coração. Rever o Luigi... Só faltou o meu Nabo. E que falta essa... Nunca mais regresso a Londres, enquanto ele lá viver, sem ele lá estar...

Passou-se o Verão e nunca senti saudades de Londres. Mantive o contacto com as pessoas, mas não senti falta do meu ano em Londres. Não tive ressaca pós-Erasmus.

Mas quando voltei... Quando voltei, apercebi-me. Do bem que Londres me fez. Do mundo que agora tenho cá dentro. Da coragem. Da recém-descoberta capacidade de estar sozinha e fazer as coisas sozinha. Da introspecção. Da quanto a minha força está no que socialmente pode ser considerado frágil... Do quanto prezo a minha companhia.

Londres é uma casa para mim. Londres tornou-se também a minha cidade.

Quanto mais viajo, mais gosto da sensação de lar.

MJNuts

Friday, October 15, 2010

A História do Canal

É incrivelmente idiota. Nós somos todos incrivelmente idiotas. O dia está chuvoso e nublado, a atmosfera carregada de humidade. Mesmo de ténis, o mármore é escorregadio. Mas lá descemos as escadas e aproximamo-nos cada vez mais do vértice do triângulo, sem qualquer noção do perigo.

Nunca quis saber da obsessão com as câmaras e as fotografias, mas alinho na brincadeira. É giro na altura de ver e recordar. Não estou em mim e olho à volta e para o céu como se fosse uma visão espantosa e impossivelmente nova. Nem ligo à ideia de pousar a máquina para lá da plataforma, depois da água.

Só associo quando uma mão me agarra e vejo o ar de pânico dele, já numa posição que invariavelmente indica que vai cair e não tem como se safar disso. Escusava era de me levar a mim também...

Sinto a força do embate na água ao longo de todo o comprimento do meu corpo e a chapa só não dói porque é Abril e ainda faz frio em Amesterdão e estou enterrada em camisolas e casacos.

Sinto uma onda de frustração abater-se sobre mim quando os meus olhos se abrem e só vejo aquela cor aguada e verdosa a rodear-me. Caí de barriga para baixo. Nem acredito que caí a um canal... A roupa pesa-me, o que não ajuda à irritação que já se instalou. Estou tão segura da estupidez do acontecimento que nem me lembro dele. Limito-me a esbracejar à cão até ao triângulo para voltar a terra firme. Mas o triângulo, falso, é uma plataforma flutuante e, sem onde apoiar os pés e demasiado pesada para me erguer decentemente, bato uma vez com a cabeça antes de me aperceber que vou precisar de mais esforço para conseguir sair dali. Mas estou segura, estou agarrada. Vejo-as lá em cima, petrificadas, estupefactas, também incrédulas com o que acabou de acontecer.

À minha direita, oiço de repente aquele som inconfundível de alguém a sair da água, numa inspiração ruidosa e sôfrega.

"A Maria! Agarrem a Maria!"

É a voz dele. Pois claro, ele também caiu. O grito aflitivo parece libertá-las do seu torpor, pois correm na minha direcção. Sinto-o a empurrar-me para cima como se a vida dele, não, como se a minha vida dependesse disso e, com elas a puxarem-me pelos braços, consigo encontrar uma posição que me permite sair sozinha de dentro de água, coisa que faço sem mais delongas. Fico parada, em pé, a pingar miseravelmente, e a fitá-las, sem dúvida que com a mesma expressão de descrença que lhes leio no rosto. Isto não está a acontecer.

Oiço-o sair da água atrás de mim, sozinho, sem precisar de ajuda. É impressionante a força que aquele rapaz tem. O pingar da água é ainda mais evidente nele do que em mim, talvez porque a ele posso vê-lo por completo, enquanto a minha visão de mim é sempre aquele olhar para baixo que nunca conseguirá ver a cabeça sem a ajuda de um espelho. Até do queixo a água lhe pinga, por alguns instantes.

Respiramos sonoramente durante uns segundos, sem encontrar palavras. Depois, eu não consigo evitar sorrir e por fim solto uma gargalhada. Foda-se, caí a um canal em Amesterdão!

A minha gargalhada provoca o riso também nelas e é como se a tensão do momento se desanuviasse um pouco. Verificamos as coisas que temos, completamente encharcadas. O telemóvel já se foi, assim como a máquina. O conteúdo da carteira talvez ainda se safe, depois de seco. Os objectos que estavam nos bolsos dos casacos flutuam agora ao longo do canal.

Ele começa a tremer. Lembro-me novamente que é Abril e ainda faz frio em Amesterdão. Temos de voltar para casa, que fica a 20 minutos dali, a pé. Elas insistem que vamos de trem, que assim podemos ficar doentes. Mas eu e ele sempre fomos forretas, além de teimosos, e Amesterdão, para nós, não é cidade onde se ande de transportes.

Pomo-nos a caminho, a um passo tão rápido que está muito próximo de ser corrida. Elas ficam para trás. Avançamos lado a lado e oiço a respiração ofegante dele tão claramente como oiço cada passo que ele dá. Trocamos algumas palavras.

Ainda não estou em mim.

Ele estende-me a mão. Aberta, grande, trémula. Eu agarro-a sem hesitar e é a partir desse momento que se nota que ele consegue andar bem mais depressa que eu. Vou sempre um pouco atrás, com ele a puxar-me, mas a minha mão presa na dele diz-me que vou onde ele for e que separados é que não vamos a lado nenhum.

Sinto o frio dele. Está a fazer uma força hercúlea para aguentar. Pergunto-me se, no meu estado normal, teria resistência suficiente para aguentar aquilo tudo. Quero acreditar que sim. Mas, no estado em que estou, não sinto frio nenhum, sinto só o desconforto da roupa molhada sob o corpo na húmida Amesterdão. As calças de ganga contra a pele parecem fazer-me cortes nas pernas a cada passada e isso permite-me saber que, tal como ele, e mesmo que sem frio, não aguentarei muito mais tempo.

Atravessamos as pontes sobre um e outro e mais outro canal. Parecem não acabar. Nunca um regresso me pareceu tão longo. Apesar de tudo, sinto-me bem. Estou viva e tenho-o ao meu lado. Nunca os edíficios da cidade me pareceram tão belos e familiares. O céu cinzento não é opressivo, é bonito. E, por uma vez, deixa-nos percorrer o nosso caminho debaixo dele sem nos cobrir de chuva. Será que faria diferença?

Andamos, andamos, andamos... Não me lembro de a casa ficar tão longe. Os meus sentidos começam a ficar desatentos e só me consigo concentrar na força com que as nossas mãos se apertam, na respiração pesada e regular dele, nos meus passos mecânicos, um atrás do outro. Ele tem os dentes cerrados, o olhar fixo. Não conseguiria falar mesmo que quisesse. Mas eu sou leve e ainda consigo.

"Estamos quase, só mais um bocadinho..."

Chegamos finalmente. Ele atrapalha-se a pôr a chave na porta. Treme, experimenta, está irritado, estamos quase! Conseguimos. E corremos escadas acima sem nos preocuparmos em descalçar. Só queremos o conforto e um banho quente.

Ouvimos os gritos da velha, mas já estamos na casa-de-banho a despir-nos e esta não é a altura para nos preocuparmos com ela e com as suas regras absurdas.

A água quente escorre-nos pelos corpos nus e até se vê vapor a soltar-se do gelo da nossa pele. Sorrimos, parvos, felizes, a adorarmo-nos assim, como somos. Vivos. Vibrantes.

Mas a velha bate à porta e grita, histérica. Só pode estar um de cada vez na casa-de-banho. E então ele sai, nu, frágil, pequeno.

Aquele que deveria ser o melhor banho das nossas vidas termina abruptamente da pior forma. Sozinha, sabendo-o ao frio, tomo o duche mais rápido que alguma vez me lembro de tomar.

Oiço-o lá fora, do outro lado da porta, a tentar explicar a situação. Antes de sair, olho-me ao espelho e sorrio. Poesia.

Aconteceram mais coisas, muitas mais, ao canal associadas. Mas isto é o que escolho recordar, porque até ao momento em que fiquei seca, ele amou-me duas vezes: tirou-me do canal primeiro pensando que eu corria perigo quando ele até estivera em maior risco; e deixou-me na banheira ante as ameaças da velha, para terminar o banho primeiro, quando ele tinha estado com mais frio que eu.

E por isso eu posso ser mais alerta e até mais disponível no dia-a-dia e volta e meia ressentir-me porque precisava de um pouco mais de atenção, mas é impossível esquecer-me da certeza de um amor que sabe o que vale e que vai até ao fim.

Damos igualmente, cada um à sua maneira.

Devo-te muito de quem sou. E amo-te.

MJNuts


Que possamos partilhar novas aventuras nos teus 21.